Cinquenta anos da câmera digital: a revolução da imagem

Em 1975, Steven Sasson, nos laboratórios da Kodak, mudava para sempre o mundo da imagem fotográfica, que hoje está ao alcance de todos

(Redação Serra Verde / Fonte: Jornal da USP / Texto: Jornal da USP - sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira. disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/cinquenta-anos-da-camera-digital-a-revolucao-da-imagem/


Se você tem mais de 30 anos, provavelmente se recorda das câmeras analógicas. Com um processo ainda não dominado pelo digital, a fotografia vivia em uma outra velocidade. Eram comuns problemas de queima de filmes, limite de “poses” (número limitado de fotografias) e uma relativa demora entre o ato de fotografar e a capacidade de poder ver a sua foto. 

Em 1975, a situação muda. Nos laboratórios da Kodak o engenheiro Steven Sasson criou a primeira câmera que dispensava filme ou qualquer superfície fotossensível. Pela primeira vez na história, tínhamos uma câmera onde o processo de captura e revelação da imagem dispensava produtos químicos. Nascia a fotografia digital. 

Obviamente, nem tudo anda tão rápido assim. Entre a descoberta da câmera digital e sua popularização, primeiro pelas câmeras em si e depois pelos celulares, computadores, carros e sistemas de segurança, ocorreram diversos processos. Quem explica um pouco melhor essa história é Atílio Avancini, fotógrafo e professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. 

Origens do digital 

A descoberta da câmera vem de antes dos filmes fotográficos e é associada a Louis Daguerre, com o seu daguerreótipo. A primeira foto tirada durou cerca de oito horas. Todavia, foi por meio da Kodak que ocorreu a popularização da fotografia, em 1888, com a primeira câmera de filme de rolo. “É importante frisar que a Kodak foi pioneira na câmera em 1888, que era uma câmera que você fotografava, deixava o filme em loja ligado à Kodak e eles revelavam. Tinha aquela máxima de que ‘você aperta o botão e a gente faz o resto’. Quase um século depois, a Kodak é pioneira também nessa fotografia digital, que é uma câmera com sensor CCD de 10 mil pixels, e uma captura lenta em 23 segundos, ou seja, o surgimento da câmera digital, ela repete o surgimento da câmera fotográfica.”, explica Avancini. 

No início, além da demora na captura, a fotografia digital não alcançava a qualidade das fotos feitas com filme. Avancini trabalhava para a grande mídia e para agências de notícias na época da introdução das câmeras digitais no mercado e disse que houve muita resistência por parte dos fotógrafos da época. “A câmera com filme era de uma qualidade ainda muito melhor. A gente tinha fotógrafos que diziam que se sentiriam traídos em pular para o digital”, completa. 

O professor ainda salienta que a primeira experiência concreta do fotojornalismo com as câmeras digitais ocorreu na Copa do Mundo de 1994, e que elas começaram a ser incorporadas, de fato, no início do século 21. 

Avanços na imagem 

Com o passar dos anos, as câmeras digitais se tornaram mais acessíveis. “Hoje a gente tem uma câmera digital que o acesso é praticamente democrático, todos podem fotografar, e a gente tem uma câmera profissional que requer custos, despesas. Muitos profissionais estão trabalhando praticamente só com smartphone.” Embora Avancini afirme que a qualidade do filme ainda não foi superada pela câmera digital, admite que o digital superou o analógico e que, por meio do digital, a fotografia hoje alcança cores que não eram possíveis no passado. Por outro lado, a questão do digital, me parece, não é tanto técnica. Me parecem aspectos que saem um pouco do escopo da fotografia. Sebastião Salgado tem a máxima de que a fotografia analógica fazia fotografia, e a fotografia digital faz imagem”, completa Avancini. 

Imagem crítica 

Segundo o professor, antes mesmo da IA, a fotografia inaugura a dimensão das imagens feitas por máquinas. Hoje, no digital, existe um bombardeio de imagens. Citando Walter Benjamin, Atílio Avancini comenta a ideia do escritor sobre a perda da “aura” na arte: “Tudo ficou muito homogêneo, tudo ficou comum, tudo ficou muito ordinário. A gente hoje não tem mais o hábito de apreciar imagens, a gente passa, a gente olha as imagens, a gente não vê mais as imagens. É o afastamento da essência mágica, esse ambiente sagrado inexiste, e o que existe é um campo minado, principalmente em torno do capitalismo”. 

Ana Claudia Scuderi, historiadora da arte, fotógrafa e mestranda em História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, salienta: “Eu acho que essa evolução, vamos chamar de revolução, é diária. Todo dia aparece uma inovação tecnológica, tanto para mudar essa imagem em softwares, aplicativos, para manipulação de imagens quanto aparelhos mesmo”.  Ana comenta que as redes sociais e mudanças na circulação das imagens atingem principalmente a recepção das gerações mais novas, nativas digitais. As relações de memória são transformadas mediante o imediatismo da nossa geração e a massificação da fotografia. 

Massificação, armazenamento e IA 

A fotografia vem num processo evolutivo de democratização desde a sua invenção. É lógico que as câmeras digitais fizeram com que o consumo aumentasse, mas eu acredito que a democratização mesmo veio com as câmeras digitais nos smartphones. Se você tem mais de 5 bilhões de pessoas fotografando, fazendo imagens diariamente, para mim é massificação”, comenta Ana. 

Mediante essa massificação, ambos os entrevistados trouxeram duas questões principais. A primeira é a manipulação facilitada das imagens no ambiente digital. Com diversos softwares e a inteligência artificial, surgem dilemas éticos em relação às imagens que circulam na internet. Um outro ponto é a questão do armazenamento. Se antes era necessário espaço físico, em álbuns ou em gavetas capazes de armazenar filmes revelados, hoje são cada vez mais necessários data centers e armazenamento na nuvem. Segundo Ana: “Isso se tornou uma ferramenta incrível para a criação, para os artistas. Eu acho que a gente não pode deixar de pontuar que essa revolução digital é interessante, mas tem esse problema, ela é uma ferramenta também negativa”. 

Se antes as câmeras se restringiam aos documentários, filmes de ficção e à fotografia, hoje elas se encontram em todos os lugares, nos nossos smartphones, carros, celulares, drones e sistemas de segurança. Por fim, Atílio Avancini completa: “Eu acho que o grande marco da fotografia digital é a capacidade de você instantaneamente cobrir um evento em qualquer parte do mundo e isso estar sob os nossos olhos em frações de segundos. Para mim, essa é a grande revolução. Se a gente pensar, isso é um ganho muito grande. Mas, por outro lado também, isso ficou tão acessível, tão fácil, que a gente praticamente não dá mais importância. Eu acho também que hoje a gente está sendo muito vigiado. Essa imagem digital está em toda parte e a gente está num grande big brother de saber onde cada um está em qualquer momento, em qualquer fração de segundo”.